Cruzeiro Seixas
A relação de amizade entre Cruzeiro Seixas e o Poeta Albano Martins remonta ao início da década de 80, quando foram apresentados por amigos comuns.
Essa amizade foi estreitando laços, e está plasmada quer na profícua epistolografia, quer através da estreita colaboração em publicações do Poeta, quer das obras que trocaram entre si, daí resultando a vasta coleção particular de Albano Martins, de que aqui se apresenta uma mostra.
É a última homenagem prestada ao Grande Mestre do Surrealismo Português que constitui a capa do livro póstumo do Poeta, "Os Dados de Eros".
Para Albano Martins e Cruzeiro Seixas, in memoriam
No livro-homenagem coletivo de (con)celebração de Albano Martins Uma flauta na Areia, organizado e editado pela Professora Isabel Vaz Ponce de Leão, falava eu quase no final da minha modesta contribuição sobre a poética de Albano da presença nela de alguns “contrários” - entre eles, os estabelecidos pela tradição clássica entre linguagens artísticas e géneros e subgéneros de cada uma delas - dialeticamente resolvidos pela magia do verbo do Poeta:
Arte e vida, ser e dizer, contradições que podem explicar o denominador comum da poesia de Albano Martins: a tentação (não, nunca, a “vocação”) do silêncio. O famoso “sentir tudo de todas as maneiras possíveis” pessoano afinal mais não é do que uma formulação parcial do velho sonho romântico de Absoluto, da prometeica aspiração à (e exigência de) Totalidade - no olhar, no compreender, no sentir, no dizer. Dizer tudo de todas as maneiras possíveis, convocando a pintura e a música em ajuda da palavra insuficiente, pondo a dialogar poesia e pintura em várias direções -sem chegar ao extremo copulativo do caligrama, a colagem ou o picto-poema-diálogo esse que culminará no livro singular e de titulo definitório A Voz do Olhar, procurando também a aliança da música (Verlaine, sim, e Pessanha, mas sobretudo o autor a quem dedicou Albano Martins estudo e antologia, Eugénio de Castro, um dos muitos poetas a rever) perseguindo, enfim, o horizonte louco daquele “simultaneísmo” que nos fez lembrar Blake, e Wagner, e Mallarmé, e Pessoa, e Blaise Cendrars e tantos outros, e que foi marca duma Modernidade que (infelizmente?) não ganhou ainda o “pós” que a redima. Pintura, poesia e música, trindade de linguagens que exemplarmente vão para além do simples diálogo para dançar e se confundirem no poema que, como o título trinitário de “Vermelho, azul e branco”, o poeta dedicou a Serafim Ferreira:
E se de repente
a música
(vermelha)
fosse luz
e uma centelha
(azul)
se desprendesse
e o sangue
ardesse?
E se de repente
(branca)
a morte
sobre
viesse?
Citei alguns dos Mestres da Modernidade, e devia ter citado também, entre outros, alguns dos nomes maiores da intervenção surrealista em Portugal (e, diga-se de passada, da Modernidade), e muito particularmente o de Artur Manuel do Cruzeiro Seixas, tão admirado pelo autor de Vertical o Desejo, Rodomel Rododendro ou Escrito a Vermelho. Muitas vezes, ao longo dos nossos frequentes e procurados encontros, quase sempre com a presença sempre ativa da Kay, apareceu o nome de Cruzeiro Seixas, e, na casa-toca-cripta de Vila Nova de Gaia, ele ia-me mostrando os quadros, os desenhos, as cartas perfeitamente organizadas e arquivadas, com palavras que eram leitura, interpretação, comentário e homenagem daquele universo consubstancial ao seu viver. Mas desse convívio fala melhor o poema que ele próprio escreveu e que aparece recolhido na coletânea Caderno de Argolas (2000-2010):
Carta a Cruzeiro Seixas, com um abraço
Dir-lhe-ei, Amigo,
que colecciono mentalmente
os seus objectos, que convivo
amorosamente com os seus
desenhos, me identifico
com os seus desaforismos e leio
com devoção
os seus poemas. Sim,
com devoção, porque devotos
são os que amam, e eu
amo sinceramente
os seus poemas. A história
da poesia portuguesa
do nosso tempo só
estará correctamente
escrita quando
conhecermos todos
os seus papéis, as suas,
áfricas todas, todos
os seus desaforismos.
Quero
também dizer-lhe que partilho
das suas perplexidades. No
fragmento de país
que é este nosso não vejo, porém,
uma, antes várias,
redes de silêncio. Redes sabiamente
urdidas, organizadas para
asfixiar aqueles
que não alinham, que não se vendem, que não
se prostituem, os que
duvidam, os que sabem
que o futuro é um projecto
sempre adiado, que são necessários muitos anos
de dura aprendizagem
para um homem morrer e tudo
o que fazem é feito
de NÃO SABER.
Os seus desenhos, os seus
poemas são
património nosso
inamovível. Pertencem-nos. São, quero dizer, carne
dos nossos sonhos, matéria
da nossa
memoria íntima. É essa
a sua
soberania, que outra
não têm os poetas, e outra, eu sei,
para si não reivindica.
Deixo-lhe,
com a minha admiração um abraço e vou
tentar seguir o seu conselho:
morrer em pleno voo.
Muito antes, em Rodomel Rododendro (1998), a lembrança e a homenagem apareciam no lema que, junto com as dedicatórias, abre o livro:
Vêm os violinos
de muito longe
ouvir a neve.
E, se procurarmos mais uma via para o diálogo de Albano Martins com Cruzeiro Seixas, poderíamos ir ao livro onde de maneira mais explícita vamos ver reiteradamente perfilhados os caminhos cruzados do labirinto de ligações entre a poesia plástica e a verbal, normalmente pela via da chamada ekphrasis (refiro-me a A Voz do Olhar, de 1998), presentes na obra de Albano Martins desde os próprios títulos de muitas das sus obras até às dedicatórias e o caráter marcadamente visual das imagens dos seus poemas. A magistral e pessoal “leitura” de um dos desenhos do autor de Eu Falo em Chamas ilustra a capacidade de aproximação cordial e a profundidade e a paixão que presidiram sempre o diálogo entre os dois grandes poetas, muito longe, felizmente, daquela interpretação unamuniana do diálogo entre as nossas gentes como dois “monodiálogos” paralelos que nunca chegam a se encontrar:
Leitura de um desenho de Cruzeiro Seixas
Crescem árvores
de raízes voláteis
no sono
do cavalo. No estandarte
das crinas desfralda-se
o incêndio das marés e é
dos peitos húmidos que as pernas
e os cascos nascem. É
com elas e também
com eles que esboça
no crepúsculo
o voo permitido pelo sexo
oculto nos olhos.
E, para melhor mostrar ainda o sentido de desse diálogo como via de apropriação e comunhão, desta vez através do jogo de contrários à beira do oxímoro tão frequente na poesia de Alberto Martins, lembremos um poema de Entre a Cicuta e o Mosto (1992):
Cruzeiro Seixas: os dedos filtram a sombra
Entre o real e o sonho,
o sonho do real,
a realidade do sonho.
Entre a luz e a parede
oblíqua, os dedos
filtram a sombra estagnada.
Entre o disforme e o informe,
a forma
solenemente exacta.
Quando Albanio Martins falava do silêncio em relação com uma parte significativa da obra de Cruzeiro Seixas, dele próprio falava, dos sobrepostos silêncios tecidos cuidadosamente à volta de sua obra polifacética e exemplar, e é contra esses silêncios contra os que mais uma vez alçamos a nossa voz para manifestar a sua permanente presença, porque, como sabemos, viver é ser lembrado.
Perfecto E. Cuadrado
Sobre o(a) artista
Para saber mais:
https://www.por.ulusiada.pt/downloads/eventos/BIOGRAFIA%20DE%20CRUZEIRO%20SEIXAS.pdf
Outras Informações
Artista: Cruzeiro Seixas
País: Portugal
Ano: S/INFORMAÇÃO
Dimensões: S/INFORMAÇÃO
Técnica: S/INFORMAÇÃO
Proprietário: S/INFORMAÇÃO